segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Os sobreviventes recontam tragédia



Jovens que saíram com vida da festa narram momentos de pânico no interior da danceteria.

A banda estava tocando, mas nem todo mundo prestava atenção no palco no momento em que a Gurizada Fandangueira, segunda atração da madrugada na Boate Kiss, realizava seu show. Entre 2h30min e 3h da manhã de domingo, no momento em que o grupo tocava uma cover da canção Amor de Chocolate, do cantor Naldo, um dos integrantes acendeu um sinalizador.
— Era um desses sinalizadores sputnik pequeno, dos que vêm quando se compra espumante — especifica o personal trainer Ezequiel Real, 23 anos, um dos presentes à festa na casa de show em Santa Maria.
Faíscas escaparam do artefato — comum nas apresentações da banda — e incendiaram o forro de espuma acima do teto, que servia para isolamento acústico. Em um primeiro momento, os espectadores não chegaram a se assustar com o princípio de incêndio.
— Eles tentaram apagar o fogo, que até então estava pequeno. O vocalista da banda pegou um copo e tentou jogar para cima. Não sei se adiantou ou se alastrou mais o fogo. O vocalista parou de cantar, pegou o extintor. Acho que estava estragado ou vencido, não funcionou — conta Murilo Xavier Lima, 22 anos, natural de Alegrete, atualmente morando em Brasília.
Ele e o irmão, Luciano, 25 anos, estavam a cerca de três ou quatro metros do palco. Nem todo mundo percebeu o perigo do que acontecia.
— Quando o vocalista viu que tinha pego fogo, pegou um extintor, mas o extintor só deu um "cuspe", e a galera começou a vaiar — conta Ezequiel.
Foi só depois que as chamas se espalharam que ficou claro para muita gente o que estava acontecendo.
— Como o fogo pegou no teto, caíam pedaços da espuma, incandescente, sobre as pessoas. O cenário era infernal: copos quebrando, gente caindo, empurra-empurra. Para as mulheres, com salto alto, era ainda mais difícil chegar até a saída pelo corredor estreito — narra a vendedora Luciene Louzeiro, 32, anos, frequentadora habitual dos shows da banda.
"A fumaça era muito tóxica"
O pânico e o incêndio se alastraram, ambos, com uma velocidade vertiginosa. As amigas Kellen Rebello da Silva, 21 anos, e Bruna Carolina Mariano, 23 anos, se espremeram na multidão que tentava deixar a boate e saíram correndo em direção a um estacionamento localizado no outro lado da rua. Quando olharam outra vez para a casa noturna, o que viram foi uma coluna de fumaça que saía pela porta e a obscurecia até mesmo a visão da entrada. À primeira vista, o que mais as impactou foi a cor:
— Era uma fumaça muito escura, preta, densa. As pessoas saíam dela passando muito mal — comenta Kellen, estudante de Farmácia, residente em Florianópolis, que estava em Santa Maria para visitar a família.
Ezequiel também percebeu que o grande problema naquele incêndio era a fumaça, uma cortina de escuridão e elementos nocivos que impediu muitos frequentadores de se orientar ou escapar a tempo.
— Tentei manter a calma, mas a fumaça era muito tóxica. Queimava muito ao respirar — conta.
Nessa situação de urgência, muitos criticam a demora dos seguranças em perceber a gravidade do que estava ocorrendo. Alguns deles, não convencidos de que se tratava de um incêndio, barraram nos minutos iniciais muitos que tentavam deixar a casa, exigindo o pagamento do que havia sido marcado na cartela de consumo.
— Só deixaram as pessoas passar quando viram a fumaça, que já havia tomado conta da pista. Talvez, se não tivessem bloqueado, mais gente se salvaria — indigna-se Luciene.
De acordo com outros relatos dos sobreviventes, o equívoco dos seguranças, se ocorreu, foi rápido.
— Quando saímos, ninguém mais estava barrando. Os seguranças estavam pedindo calma — comenta Kellen.
Jovens voltaram para o socorro
Sobreviventes relatam que as primeiras unidades do Corpo de Bombeiros chegaram rápido — mas, mesmo assim, muitos dos que haviam conseguido escapar permaneceram no local tentando oferecer socorro aos que ainda estavam presos na boate. Frequentadores tentaram derrubar as paredes a golpes de picareta para retirar os que haviam ficado trancados. Os relatos são de solidariedade e desespero.
— Voltei para tirar gente e puxei muitos para fora. Era muito difícil, porque estava todo mundo amontoado, empilhado, e não se via nada. Eu agarrava uma perna, um braço, o que podia, e puxava, mas era difícil. Uma hora, duas meninas me pediram ajuda, eu não sabia quem salvar. Respirei, comecei a tontear e não consegui pegar nenhuma. Tive de sair para respirar e me molhar um pouco antes de voltar — relata o personal trainer Ezequiel Real.
Além das chamas e da fumaça, o descontrole da multidão tentando escapar pela única e estreita saída foi responsável por ferimentos graves. A estudante Bruna Carolina Mariano, depois de escapar do clube, voltou para prestar socorro a quem podia. Viu-se tentando estancar um grave sangramento na perna de uma jovem que havia sido pisoteada na correria da saída.
— Eu e outra moça fizemos um torniquete e tentamos estancar, mas ela sangrava muito. Conseguimos fazer um carro parar para levá-la, mas ele estacionou na esquina, então tivemos de carregá-la. Depois daquilo, nem sei como ela está. Ela estava muito ferida — lamentou Bruna, que ficou com a amiga Kellen Rebello da Silva em frente à boate, ajudando no que podiam, até por volta de 5h.
A corrente de socorro agregou mesmo quem não estava presente na casa de shows. Ao saber da tragédia, , muitos se prontificaram a ir ao local oferecer ajuda.
Os acadêmicos de Farmácia e Enfermagem da UFSM Felipe Bellinaso, 22 anos, e Eduarda Jacobi, 19, estavam no Hospital de Caridade ajudando nos primeiros socorros às vítimas e foram até a boate, por volta das 6h, para colaborar na remoção dos corpos. Conforme eles, boa parte dos mortos estava nos banheiros.
— Eles correram lá para dentro porque a porta é corta-fogo, mas se aglomeraram — conta Eduarda.
Michele Schneid, 22 anos, trabalha há 10 meses na Kiss. No momento do incêndio, estava no caixa, próximo à saída, e por isso conseguiu escapar. Pela manhã, foi até o local do incêndio e reconheceu alguns colegas.
— Havia 23 funcionários trabalhando. Metade está morta — diz.


Veja onde aconteceu
 
Imagem: Arte ZH

A boate
Localizada na Rua Andradas, no centro da cidade da Região Central, a boate Kiss costumava sediar festas e shows para o público universitário da região. A casa noturna é distribuída em três ambientes - além da área principal, onde ficava o palco, tinha uma pista de dança e uma área vip. De acordo com o comando da Brigada Militar, a danceteria estava com o plano de prevenção de incêndios vencido desde agosto de 2012. 

Clique na imagem abaixo para ver a boate antes e depois do incêndio
A festa
Chamada de "Agromerados", a festa voltada para estudantes da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) começou às 23h de sábado. O evento era de acadêmicos dos cursos de Agronomia, Medicina Veterinária, Tecnologia de Alimentos, Zootecnia, Tecnologia em Agronegócio e Pedagogia. Segundo informações do site da casa noturna, os ingressos custavam R$ 15 e as atrações eram as bandas "Gurizadas Fandangueira", "Pimenta e seus Comparsas", além dos DJs Bolinha, Sandro Cidade e Juliano Paim. 


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